quinta-feira, 13 de março de 2008

Livros à mão cheia: III Manifesto Poesia Nossa de Cada Dia

A cidade do Salvador tem se destacado no cenário nacional e internacional como metrópole cultural e artística, sobremodo no período carnavalesco, cuja prioridade na organização estrutural tem sido a “menina dos olhos” de muitos gestores públicos e isso tem assegurado alto nível de profissionalismo a cada ano.

A velha Cidade da Bahia, como costuma ser tratada por escritores como Jorge Amado, tem, por outro lado, perdido um importante referencial de cultura e cidadania. Nas últimas décadas as tradicionais livrarias desapareceram do centro comercial de Salvador (Avenida Sete de Setembro, Rua Carlos Gomes, Comércio, Pelourinho, Rua Chile e adjacências), dando lugar a um tipo de comércio mais imediato e, talvez, mais lucrativo.

É incrível essa mudança de paradigma em que os espaços de difusão cultural estão sendo ocupados por estabelecimentos que antes abrigavam livros e materiais escolares passaram a ser ocupados por máquinas de caça níqueis ou funcionam como depósitos de bebidas e distribuidoras de produtos de beleza.

Organizações como a Civilização Brasileira e a Distribuidora de Livros Salvador que atuavam com predominância no ramo de livrarias fecharam as suas lojas distribuídas em pontos estratégicos da cidade, incluindo até os dois shoppings centers instalados entre os Barris e a Piedade. O pouco que nos restou desses estabelecimentos ficou restrito ao comércio de papelaria que ocupa um pequeno trecho da Avenida Joana Angélica.

Ao que se tem notícia, na década de 1950, o professor Pinto de Aguiar conseguiu realizar um trabalho pioneiro de difusão do livro em Salvador, através da Livraria Progresso instalada na Praça da Sé. Ao assumir um visual quixotesco ele promoveu uma intensa campanha editorial cuja dimensão social e cultural só veio a ter um tímido paralelo com a criação na década de 1990, dos selos editoriais coordenados pela Fundação Cultural do Estado e mais recentemente, pela Superintendência de Cultura.

Contudo, temos acompanhado nesses anos o declínio vertiginoso de projetos audaciosos criados com o intuito de tornar o livro mais acessível e mais aprazível, como o do antropólogo Olímpio Serra, instalado num casarão do Pelourinho com o sugestivo título de Sabor dos Saberes e que logo desapareceu, passando a integrar a lista silenciosa e deprimente dos projetos “utópicos” fracassados cuja inspiração inicial parece sair do poema Castroalviano O livro e a América, e cujos versos proféticos se tornaram populares:
Oh! Bendito quem semeia
livros, livros à mão cheia
e mando o povo pensar.

Em 2007, a Fundação Pedro Calmon, apostando nesse lema, criou uma campanha comunitária de distribuição de kit livros em praças públicas, no Dia Nacional da Poesia e Dia de Castro Alves, 14 de março. Outras iniciativas foram realizadas como a Bienal do Livro, todas insuficientes para conter a onda avassaladora do capitalismo em Salvador.
A livraria-shopping Grandes Autores, o Espaço do Autor Baiano, a Livraria Universitária, a Livraria Senhor do Bonfim, a Civilização e a Distribuidora da Avenida Sete fecharam as suas portas para o público e para o comércio de livros, por sua vez caíram no esquecimento os nomes memoráveis de livreiros como Dmeval Chaves, Abdon Rosado e Adelmo Prado, sem falar no velho Bonfanti citado no livro amadiano Tenda dos milagres.

As tradicionais feiras de livros que reuniam milhares de pessoas em espaços públicos, não existem mais. Os projetos e os selos editoriais foram engavetados pela gestão atual da Secretaria de Cultura. Pouco ou quase nada se publicou nesse novo paradigma, que fora implantado na administração pública estadual. Parece que os autores novos e velhos, foram alijados do mercado editorial que se estava consolidando e que tinha a Empresa Gráfica da Bahia como grande aliada institucional e importante vetor de inclusão social e cultural. Registre-se a iniciativa revolucionária de publicar, gratuitamente, livros inéditos durante a realização da VIII Bienal do Livro da Bahia. Infelizmente o audacioso projeto morreu no nascedouro. A grande mídia calou-se sobre esse assunto e os livros continuam engavetados.

Abolição! é o nosso grito de desabafo nesse III Manifesto Poesia nossa de cada dia, contra o aprisionamento intelectual na Bahia do século XXI, que acumula os altos índices de violência, analfabetismo (inclusive funcional), subemprego, gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis, consumo de álcool e drogas. Contudo, o refrão “brasileiro lê pouco” ou “baiano não lê”, continua sendo repetido apesar da criação do Ano Municipal da Leitura, realizado através de eventos em espaços públicos do centro antigo da cidade e registrado em fotografias, em jornais e em relatórios.
A prática da leitura no entanto, continua distante da pauta dos gabinetes das autoridades estaduais e municipais, eleitas para promoverem a ontológica justiça social. Até quando?

Resistimos, os raros moicanos, ao impulso da sanha carnavalesca que consegue impor uma mobilização política, cultural e social em níveis tão altos, que consegue ainda, dispor de recursos financeiros de altas cifras numa facilidade invejável, que esse manifesto se quer ousa alcançá-los em seus míseros objetivos.

Como o carnaval dura poucos dias nos sobra tempo suficiente para freqüentarmos as poucas livrarias como a que funciona na Praça da Sé, numa lojinha próximo ao Plano Inclinado Gonçalves, especializada em obras sobre a cultura afro-brasileira e nas raras publicações da Ediouro; e os poucos sebos que estão surgindo de iniciativas particulares como o Diadorim de João Filho, instalado nas imediações do Forte de São Pedro.

Entretanto, entendemos que a nossa fome de leitura, o nosso ardor pelo acesso ao livro e a nossa vontade férrea de querer pensar, racionar e refletir, também deve ser respeitada e assistida na “terra do axé”, como nos parece acontecer em outros locais aonde prevalece em nível de igualdade, o acesso ao livro, à música, à dança, ao carnaval, ao futebol, à moradia, à saúde, à educação.

Insistimos no ideal de Castro Alves por acreditarmos que “o livro caindo n’alma é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar”.
Salvador, março de 2008
Marcos Santana, Arte-educador E-mail: culturapopular@bol.com.br