sábado, 1 de novembro de 2008

Feia

Dizia tudo com os ombros. Caracol de cabelo liso, intensa beleza sem registro. No movimento do ônibus move-se o fio, Macabéa aparece, inverossímil.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Despertando

Há muito não experimenta o silêncio. O chiado do canal fora do ar é para ela uma canção de ninar. Parece que o pai reaparece, vindo do além, e a acaricia na cabeça, percorrendo com os dedos os longos fios negros de seu cabelo. O filho desliga o aparelho. Ela acorda. Vai em direção à cama, cambaleando, perturbada com o fim abrupto da cantiga.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

"Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher".


Gorz, André. Carta a D: história de um amor, tradução de Pedro Azzan Jr. São Paulo: Annablume; Cosac Naify, 2008.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Relance

Num instante. No tempo que a fumaça utilizou para percorrer a senda do cinzeiro até os meus cabelos. Na duração de um estribilho de Rufus Wainwright. Exatamente no momento em que o garçom, em sua pressa costumeira, limpou a mesa, livrando-a do degelo da cerveja. Um garotinho japonês que, certamente, era chinês, cujas feições me fizeram lembrar um desenho animado, sorriu para mim.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

ELES

Bem perto do fim
Ele encontrou a
Moça. Ela pensava
Começar ali a
Estrada que ele
Findava.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Livros à mão cheia: III Manifesto Poesia Nossa de Cada Dia

A cidade do Salvador tem se destacado no cenário nacional e internacional como metrópole cultural e artística, sobremodo no período carnavalesco, cuja prioridade na organização estrutural tem sido a “menina dos olhos” de muitos gestores públicos e isso tem assegurado alto nível de profissionalismo a cada ano.

A velha Cidade da Bahia, como costuma ser tratada por escritores como Jorge Amado, tem, por outro lado, perdido um importante referencial de cultura e cidadania. Nas últimas décadas as tradicionais livrarias desapareceram do centro comercial de Salvador (Avenida Sete de Setembro, Rua Carlos Gomes, Comércio, Pelourinho, Rua Chile e adjacências), dando lugar a um tipo de comércio mais imediato e, talvez, mais lucrativo.

É incrível essa mudança de paradigma em que os espaços de difusão cultural estão sendo ocupados por estabelecimentos que antes abrigavam livros e materiais escolares passaram a ser ocupados por máquinas de caça níqueis ou funcionam como depósitos de bebidas e distribuidoras de produtos de beleza.

Organizações como a Civilização Brasileira e a Distribuidora de Livros Salvador que atuavam com predominância no ramo de livrarias fecharam as suas lojas distribuídas em pontos estratégicos da cidade, incluindo até os dois shoppings centers instalados entre os Barris e a Piedade. O pouco que nos restou desses estabelecimentos ficou restrito ao comércio de papelaria que ocupa um pequeno trecho da Avenida Joana Angélica.

Ao que se tem notícia, na década de 1950, o professor Pinto de Aguiar conseguiu realizar um trabalho pioneiro de difusão do livro em Salvador, através da Livraria Progresso instalada na Praça da Sé. Ao assumir um visual quixotesco ele promoveu uma intensa campanha editorial cuja dimensão social e cultural só veio a ter um tímido paralelo com a criação na década de 1990, dos selos editoriais coordenados pela Fundação Cultural do Estado e mais recentemente, pela Superintendência de Cultura.

Contudo, temos acompanhado nesses anos o declínio vertiginoso de projetos audaciosos criados com o intuito de tornar o livro mais acessível e mais aprazível, como o do antropólogo Olímpio Serra, instalado num casarão do Pelourinho com o sugestivo título de Sabor dos Saberes e que logo desapareceu, passando a integrar a lista silenciosa e deprimente dos projetos “utópicos” fracassados cuja inspiração inicial parece sair do poema Castroalviano O livro e a América, e cujos versos proféticos se tornaram populares:
Oh! Bendito quem semeia
livros, livros à mão cheia
e mando o povo pensar.

Em 2007, a Fundação Pedro Calmon, apostando nesse lema, criou uma campanha comunitária de distribuição de kit livros em praças públicas, no Dia Nacional da Poesia e Dia de Castro Alves, 14 de março. Outras iniciativas foram realizadas como a Bienal do Livro, todas insuficientes para conter a onda avassaladora do capitalismo em Salvador.
A livraria-shopping Grandes Autores, o Espaço do Autor Baiano, a Livraria Universitária, a Livraria Senhor do Bonfim, a Civilização e a Distribuidora da Avenida Sete fecharam as suas portas para o público e para o comércio de livros, por sua vez caíram no esquecimento os nomes memoráveis de livreiros como Dmeval Chaves, Abdon Rosado e Adelmo Prado, sem falar no velho Bonfanti citado no livro amadiano Tenda dos milagres.

As tradicionais feiras de livros que reuniam milhares de pessoas em espaços públicos, não existem mais. Os projetos e os selos editoriais foram engavetados pela gestão atual da Secretaria de Cultura. Pouco ou quase nada se publicou nesse novo paradigma, que fora implantado na administração pública estadual. Parece que os autores novos e velhos, foram alijados do mercado editorial que se estava consolidando e que tinha a Empresa Gráfica da Bahia como grande aliada institucional e importante vetor de inclusão social e cultural. Registre-se a iniciativa revolucionária de publicar, gratuitamente, livros inéditos durante a realização da VIII Bienal do Livro da Bahia. Infelizmente o audacioso projeto morreu no nascedouro. A grande mídia calou-se sobre esse assunto e os livros continuam engavetados.

Abolição! é o nosso grito de desabafo nesse III Manifesto Poesia nossa de cada dia, contra o aprisionamento intelectual na Bahia do século XXI, que acumula os altos índices de violência, analfabetismo (inclusive funcional), subemprego, gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis, consumo de álcool e drogas. Contudo, o refrão “brasileiro lê pouco” ou “baiano não lê”, continua sendo repetido apesar da criação do Ano Municipal da Leitura, realizado através de eventos em espaços públicos do centro antigo da cidade e registrado em fotografias, em jornais e em relatórios.
A prática da leitura no entanto, continua distante da pauta dos gabinetes das autoridades estaduais e municipais, eleitas para promoverem a ontológica justiça social. Até quando?

Resistimos, os raros moicanos, ao impulso da sanha carnavalesca que consegue impor uma mobilização política, cultural e social em níveis tão altos, que consegue ainda, dispor de recursos financeiros de altas cifras numa facilidade invejável, que esse manifesto se quer ousa alcançá-los em seus míseros objetivos.

Como o carnaval dura poucos dias nos sobra tempo suficiente para freqüentarmos as poucas livrarias como a que funciona na Praça da Sé, numa lojinha próximo ao Plano Inclinado Gonçalves, especializada em obras sobre a cultura afro-brasileira e nas raras publicações da Ediouro; e os poucos sebos que estão surgindo de iniciativas particulares como o Diadorim de João Filho, instalado nas imediações do Forte de São Pedro.

Entretanto, entendemos que a nossa fome de leitura, o nosso ardor pelo acesso ao livro e a nossa vontade férrea de querer pensar, racionar e refletir, também deve ser respeitada e assistida na “terra do axé”, como nos parece acontecer em outros locais aonde prevalece em nível de igualdade, o acesso ao livro, à música, à dança, ao carnaval, ao futebol, à moradia, à saúde, à educação.

Insistimos no ideal de Castro Alves por acreditarmos que “o livro caindo n’alma é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar”.
Salvador, março de 2008
Marcos Santana, Arte-educador E-mail: culturapopular@bol.com.br

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

O Cão Celestial em férias

Os colaboradores do Cão Celestial informam o recesso até maio de 2008.
Motivos:
Um dos membros (B. de Quatre) se suicidou após curta temporada de estudos no Bois de Boulogne.
Carol Medrado ficou grávida e precisa fazer uma demorada pesquisa de paternidade.
Rodrigo Lopez-Balthar está ocupado com os afazeres de seu alterego acadêmico.
Somente. Até

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

No Bartleby de Melville

"Embora borre a página, a velhice é honrosa".

Homem



Faltava-lhe discurso, mas sobravam palavras.

Saida de Bundinha de 4.


Caros leitores



Informo que a partir de hoje B. de Quatre não é mais um membro do Cão Celestial. Ele pediu para sair! E, pede que informe que a saída se deve ao doutorado, mais especificamente, a concessão de uma bolsa-sanduiche que lhe permitirá morar na França sem ônus, tudo custeado pelo governo Lula. "Um Luxo", nas palavras dele.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

ENCONTRE A LUZ

Por Rodrigo Lopez-Balthar


Numa tela de TV se lê, em letras amarelas circundadas por um vermelho-inferno, os dizeres “Você está sofrendo! Ligue e Fale! 3333-3666”, onde um homem negro fala muito pausadamente (ele está lendo tudo que diz, com muita dificuldade, no tele prompter).

- Minha amiga, meu amigo, todos que se encontram ouvindo pelo rádio ou nos acompanhando pela televisão e na Internet pelo nosso site www.tosofrendo.com.br , poderão participar ao vivo dessa-sessão-divina-de-purificação-televisiva-pelo-nosso-senhor-nesta-semana-da-limpeza... Alô...Alô....Alô...Alôôôôôôôôô... Quem vem pedindo ajuda?

- ...Oi...oi.. sou eu...sou eu...

- De onde você fala e qual o seu nome?

- Sou eu Bispo, Marilda, que tava na reunião dos 333 homens de Deus e eu dei cem reais no dia e dei o depoimento sobre o irmão de uma irmã nossa ( Deus a tenha, Aleluia!) que mora aqui em casa agora, um maconheiro discarado...

- Mas eu acredito que tudo tenha melhorado em sua vida depois daquele dia, não foi? –Falou o Bispo muito sério e com os olhos penetrando a lente da câmera, o que fez Marilda acreditar que aquele homem a estava vendo.

- Assim num sei, pra eu sim mas o miserável invés de ler o Livro de Deus, continua lendo esses tal escritores de Satã, com uns nome que a gente num consegue falar, uns negóço assim Tolkiein, Oruvel e até aquele que ta no panfretinho que fala de quem vai pro inferno e que tem um nome que parece com espirro...Mietche...Vietzshe ...aquele que disse que desceu da montanha falando que falou com um ômi que falou uma coisa horrível, que eu num me lembro mais.

- Sei, mas quais foram as melhorias que Jesus, nosso Pai, operou em sua vida? Porque Ele é forte e poderoso, ilumina esta casa com um raio especial e ai daquele que duvidar da nossa força e não crer o suficiente para superar as desgraças e as maldições, não é, Bispo Romualdo?

- Com certeza – confirma o bispo auxiliar, em fase de treinamento - as maldições, eu tenho quase certeza, estão operando na vida desta senhora, mas eu preciso ouvila mais um pouco para ter certeza absoluta de que se trata de uma maldição ou de um espírito maligno que está obstruindo a felicidade, impedindo a luz divina de entrar na vida desta senhora. Fale minha filha, você tem um homem em sua vida, não é?

- Tenho...

- Veja ai Bispo Josué que o caminho esta se formando... A senhora está separada dele?

- Eu mermo não, o sinhô num se lembra do meu casamento? Foi no dia dos Duzentos Casamentos, na semana de Amán, que eu dei 250 reais pro Bispo Josué usar....

- Para Deus, todo dinheiro que entra neste templo é do Nosso Salvador! Palmas para Ele, palmas para Deus, Aleluia! Aleluia! Aleluia! Jesus!

- Aleluia! Eu sei, eu sei, eu sei, o sinhô tá certo, eu tô errada, tá marrado em nome de Nosso Senhor!

- Tá marrado! E Jesus vai operar na vida da senhora, mas agora fale e não esconda nada, pois Jesus está nos vendo...e sabe de tudo.

- Sim, é que o rapaz fica lendo estes livros de Belzebu e vai pra esses chou de roque lá na faculdade e eu ando preocupada com as carga negativa dele na minha vida, o que é que eu faço seu Bispo?

- A senhora terá que vir aqui amanhã, na sessão dos Universitários, com o Bispo Anderson e se render ao Espírito da Salvação...

- ..mas eu já fui e dei 50 reais pro Bispo Anderson, que me deu um saco de geladinho com o banho do descarrego e pediu para que eu desse um banho no miserável pra ele melhorar...

- ...e a senhora deu o banho?- perguntou o Bispo Romualdo, com brilho nos olhos, prevendo o desfecho e trocando olhares cúmplices com o Josué.

- Não!

- Então está tudo explicado - falou o Bispo Josué - como a senhora quer o resultado sem executar o mandado divino? O banho do descarrego não é qualquer emulsão, ele é bento no altar dos Carneiros de Abraão, com água do rio Jordão, acrescido de Molho Shoyu, Azeite de Oliva, Sal grosso, Água Sanitária, Ramo de Arruda, Coentro, Zimbro, Repolho e Rins de Vaca Preta. Ai de quem diga que estes elementos não são puros e divinos! Tudo isso foi misturado no caldeirão de Aarão e distribuído durante uma oração, mediante o sacrifício de qualquer quantia, que voltará em dobro, mas pelo visto a senhora não levou isto a sério, pois se tivesse dado o banho, este rapaz já estaria conosco. Mas porque a senhora não deu o banho nele? A senhora fraquejou?

- É que no dia nós tava sem muito que comer aqui em casa e o rapaz chegou da faculdade, tava cum fome, ai eu aproveitei e dei pra ele tomá misturado com a sopa, pra completá o prato, o sinhô entende, num é? Ai ele reclamou, falou que tava ruim, mas eu achei que fosse o efeito da obra divina nele e nem liguei, mas num adiantou, no outro dia ele já tava lendo um tal de Chopinhauzer e começou a dizer que ia morar numa residência, que eu acho que deve ser uma dessas seita daquele povo que vende incenso nos ônibu, num é Bispo?

- Certo, certo, minha senhora - gritou o Bispo Romualdo - Satanás está rondando a sua casa, ele está procurando uma fresta para entrar e quando encontrar, quando encontrar, vai ser uma luta muito difícil...

- Ô seu Bispo num deixa não, eu faço tudo que os sinhô manda, no dia dos endividado eu dô 200 real, no dia da mulé do pastor eu dou 100 real, na sessão do descarrego eu sempre dou mais de cinqüenta e todo mês eu e Abnevaldo, meu marido, nós dá mais de 10%, nós é gente de Deus, ora pela gente, num esquece de nós não...

Da produção do programa levantaram um cartaz dizendo, “Livrem-se desta vaca, ela está queimando nosso filme, porra!”

- Amanhã, a senhora venha até a catedral, e se despoje do mundo de Satã, venha e traga seu marido e da próxima vez dê o banho no rapaz, que está, sem sombra de dúvidas, com um encosto. Tá marrado, em nome de Jesus Cristo, Aleluia! Aleluia!

- Eu só queria saber se o sinhô ainda tá vendendo aquele papelinho da fogueira santa, que eu quero comprar...

A ligação foi bruscamente interrompida, sendo comemorada pela produção do programa e rapidamente substituída por outra, pré-selecionada.

- Alô...Alô...quem procura a luz?

- Meu marido me largou, Bispo!