domingo, 3 de junho de 2007

O CORVO de Edgard Allan Poe (em cordel)

Um aluno me perguntou outro dia se já tinha lido O Corvo, repondi-lhe que não e ganhei de presente esta tradução em estilo cordelístico, mas para mim me pareceu um projeto: ler os clássico de outra maneira, reescrevê-los ao nosso modo, sem respeito medroso.


1
À meia-noite, uma vez,
Que velhos livros eu lia,
Cuidei que talvez ouvia
Bater à porta, talvez.
Era uma leve batida,
Como que a medo contida,
E então pensei: “A horas tais,
Há de ser uma visita,
Uma tardia visita
Deve ser, e nada mais.”

2
Ai, bem quisera esquecer,
E não lembrar, como lembro:
Era no mês de dezembro,
Brasa em cinza a se fazer.
Nos livros que eu estudava
Consolo à dor não achava,
Ai, que em vão eram meus ais,
Chamando, em vão, por Lenora
— Que aos anjos ouve Lenora,
Porém a mim — nunca mais. . .

3
E eu vi então que tremeu,
Dobra por dobra, a cortina;
De uma aflição repentina
Minha alma toda se encheu.
E, o corpo a suster a custo,
Tentei reprimir o susto,
Pensando assim: “A horas tais,
Há de ser uma visita,
Retardatária visita
Deve ser, e nada mais.”

4
“Perdão, disse eu, que a dormir
E não a ler estivera,
Peço perdão pela espera,
Que já vos vou acudir,
Nobre senhor, gentil dama,
Seja quem for que me chama
Tão de manso e em horas tais.”
E à pressa a porta escancaro,
Na treva o olhar escancaro,
Vejo a treva — e nada mais.

5
Lá fora, o fundo negror
Da noite, e as sombras da noite;
Do vento o açoite, e o açoite
Do frio, e nenhum rumor. . .
Mas e essa voz que me embala
O peito, e ao peito me fala?
— Talvez que em vez de meus ais
Tivesse eu dito: “Lenora?”
Dizendo o eco: “Lenora!”
— Foi só isso, e nada mais. . .

6
E mal a porta fechei,
Minha alma em ânsias ardendo,
Eis que à janela, batendo,
Algo, de novo, escutei.
Disse a mim mesmo: “Não temas,
Livra-te dessas algemas
Que te atam a anseios tais,
Livra-te desse mistério
— Que a causa desse mistério
É o vento, e só, nada mais.”

7
De um pulo à janela vou,
De um golpe eu abro a janela,
E eis que de pronto por ela
Um corvo no quarto entrou,
Sem notar minha presença,
E depressa, e sem licença,
E sem maneiras formais,
No meu portal, à vontade,
Pousou, e então, à vontade,
Lá ficou — e nada mais.

8
Ao vê-lo assim eu sorri,
Livre de medo e de estorvo,
E assim falei para o corvo,
Quando refeito me vi:
“Ave sem crista e sem plumas,
Que em tal altura te aprumas,
Donde vens? Aonde vais?
Como será o teu nome,
Se por acaso tens nome?”
E a ave disse: “Nunca mais.”

9
Ouvir a uma ave falar:
Existe maior surpresa?
Minha alma de novo é presa
De um horror peculiar.
Quem terá, no mundo, a isto,
Que aqui vi, acaso visto?
“Ninguém, eu disse, jamais
Recebeu tal visitante,
Nem ouviu de um visitante
Um nome tal: ‘Nunca Mais’. . .”

10
Muda e parada, porém,
A ave quedou, sem resposta,
Como quem ouve e não gosta
De assim lhe falar alguém.
“Mas ah! (disse eu) já me cansa
Perder amor e esperança,
Perder amigos leais!
Tu também te vais embora,
Em breve tu vais embora. . .”
E a ave disse: “Nunca mais.”

11
Dita assim, de supetão,
Resposta tão adequada,
Supus que essa ave ensinada
Foi por antigo patrão.
Má sorte teve o seu dono:
A ave o deixou no abandono,
Depois que palavras tais
Ela aprendeu, certamente,
E hoje só diz, certamente,
Esse refrão: “Nunca mais.”

12
E nessa hora me dá
Certo langor e cansaço,
E eu me recosto no braço
De meu antigo sofá.
Fico defronte dessa ave
De ar sisudo, sério, grave,
De aspecto e porte ancestrais,
Tentando achar um sentido,
Pois há de haver um sentido,
Nesse refrão: “Nunca mais.”

13
A ave de negro capuz
Tem olhos da cor de fogo,
Que brilham em meio ao jogo
De sombras do quebra-luz,
E eu, ofuscado, me deito
No sofá, de encosto feito
Por certas mãos divinais
(Ah! que essas mãos de veludo
Não tocarão no veludo
Deste sofá — nunca mais!)

14
Nesse momento subiu,
No ar pesado do quarto,
Um cheiro de incenso, farto,
E o som de passos se ouviu.
“Ó desgraçado! — eu gritando
Falei — dos anjos o bando
Trouxe-te as bênçãos finais!
— A paz, enfim! O repouso! —
Terei enfim meu repouso. . .”
Mas a ave diz: “Nunca mais.”

15
“Profeta! Núncio do mal!
— Eu grito — Ó escuro profeta!
De que doutrina secreta
És bruxo ou mago, afinal?
Fala a verdade, eu te imploro,
Vê que de bruços eu choro!
— Dá-me os ocultos sinais
Que hão de trazer-me Lenora!
Quando há de voltar Lenora?”
E o corvo diz: “Nunca mais.”

16
“Profeta! Ó preto satã!
— Ave ou demônio de pena! —
Deixa-me de alma serena,
Ó tu que vês o amanhã!
Quero saber, negro monge,
Quando verei, perto ou longe,
Nas mansões celestiais,
Vestida de anjo ou de santa,
Essa mulher — essa santa!”
E o corvo diz: “Nunca mais.”

17
“Ó infeliz, infeliz,
Bicho ou demônio esquisito!
Volta ao teu mundo maldito,
Corvo de obscuro verniz!
Cravaste a garra em meu peito,
Ave de bico malfeito!
Vai-te! Não tornes jamais!
Deixa-me só nesta casa,
Deixa-me em paz nesta casa!”
E o corvo diz: “Nunca mais!”

18
E agora, pobre de mim,
Que desde então esse bicho
No quarto fez o seu nicho,
E eu vivo a sofrer assim:
Preso ao horror que me assombra,
Arrasto-me à sua sombra,
Nesses transes infernais,
E a minha alma não se livra,
Minha alma não mais se livra,
Nunca, nunca, nunca mais!



trad. José Lira - 1995




Tradução em décimas de sete sílabas, publicada como 'literatura de cordel', Recife (Literart, 1995).

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