quinta-feira, 5 de julho de 2007

Giselia

Por Carol Medrado


Ela estava relendo o “Cem Anos de Solidão”. Era a história de realismo mágico que ela mais gostava. Era a sua favorita entre todo o resto. A outra, a avó, gostava de ler a sinopse das novelas na Revista da TV. Lia devagarzinho, com dificuldade porque mal tinha conseguido alisar o banco da ciência. A neta às vezes se oferecia para ler, ela rejeitava a oferta. Ela era pequenina. A outra, a neta, era uma vara de tirar caju. Quando ia beijar a avó tinha que se abaixar para beijar seus cabelos. A avó era alegre, jovem. A neta era enfezada, velha. A avó sambava no meio da roda. A outra ficava de braços cruzados: “Descruza esses braços, menina! Braço cruzado é sinal de tristeza!” a avó dizia. A avó era ativa. A neta, uma dorminhoca. A avó adorava contar histórias: ninho de rato em cabelo de mulher, lagartixa que mamava em seio de mulher parida. Quando alguém contestava a veracidade dos “causos” ela soltava uma gargalhada. A neta adorava essas histórias. Eram as histórias de realismo mágico que ela mais gostava. Um dia a avó adoeceu. Não sambava mais, não sorria mais, não brincava mais, não lia a Revista da TV. Só dormia. Virou a neta. A neta ia visitá-la. Entrava no elevador, apertava o botão com o número três. Entrava no quarto com o “Cem Anos de Solidão” embaixo do braço. A avó estava lá, sentadinha na poltrona, elas conversavam um pouco. Entrava no elevador, apertava o botão de número dois. Entrava no quarto com o livro embaixo do braço. A avó estava deitadinha na cama, às vezes ela acordava, mas elas não podiam mais conversar. Entrava no elevador, apertava o número um. Entrava no quarto, o livro embaixo do braço. A avó, ainda deitadinha na cama, vários aparelhos invadindo o seu corpo. Impedindo ela de sorrir, de falar, de dançar... necessidades vitais. Fazendo ela respirar, se alimentar, evacuar... necessidades vitais. Entrava no elevador, número zero. Ela e o livro. A avó estava sentada na cama, sorria, chamava ela para brincar de capitão, reclamava com ela porque usava calças que mostravam a virilha, dizia: “Você até que está mais gordinha”. Levantava da cama e as duas saiam de mãos dadas do hospital. Era a sua favorita entre todo o resto. Essa era a história de realismo mágico que ela mais gostava....

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